Imagine que desde
jovem você tivesse que fingir ser outra pessoa, em um país estranho, falando
uma língua estranha e fingindo um casamento com uma pessoa estranha. Em que
ponto todas essas mentiras passariam a ser sua verdade? E se sua vida e seus
valores ideológicos mais profundos dependessem dessa suposta verdade? Mas e se
lá no fundo, bem no fundo, seu coração insistisse em dizer outra coisa, em desejar algo diferente com alguém diferente?
Como não enlouquecer com tudo isso?
Esse tipo de
dilema foi o que caracterizou o episódio dessa semana de The Americans. E vemos como dois espiões soviéticos enfrentaram o
problema de maneira muito diferente, e como essas diferenças de abordagem
resultaram ou em morte ou no consolo (ou talvez até a satisfação) do dever
cumprido.
Mas antes de
chegar à história principal, vamos nos deleitar um pouco em como os roteiristas
desenvolveram a situação até chegar ao tema mencionado. Começamos com uma partida
de racquetball entre dois “amigos”, Philip e Stan. (A propósito, não confundam
racquetball com squash, pois são esportes diferentes, com regras diferentes e cujo
tamanho das raquetes e das bolas são bem diferentes.)
Foi inquietante
como o que deveria ser uma demonstração de amizade quase que abertamente
caracterizou um confronto sério. Estava todo o conflito deles lá descrito: Stan
metodicamente explicando como venceria o jogo, Phil chegando a ferir Stan fisicamente
(por “acidente” é claro), e confessando que prefere vencer da maneira que
puder, pois, para ele, qualquer recurso para vencer é válido.
A partida é
interrompida por um chamado do FBI e, em se tratando de Stan Beeman, o dever em
primeiro lugar claro, embora ele esperasse que Phil seguisse as “regras de
cavalheiro e de fair play” e
terminasse a partida em outra ocasião. Mas para Phil, saiu, perdeu.
Pois bem, Stan
tem um encontro com Nina, a secretária da Embaixada Soviética recrutada contra
sua vontade para trabalhar para os americanos. Falando sério, qual vocês acham
que será o destino da bela? Para mim, suas informações darão ótimas histórias
nos primeiros episódios e, depois de algum tempo, ela terá um fim trágico, quem
sabe até nas mãos dos Jennings. No jogo de xadrez entre americanos e soviéticos
ela não passa de simples peão.
Resumindo:
através das informações passadas por Nina, o FBI fica sabendo que um anônimo
que morreu em um hospital da cidade é agente do “Diretório S”, o dos espiões
infiltrados. E usando um sofisticado sistema de reconhecimento de imagens em
escala nacional (ou seja, telefonaram para os Departamentos de Trânsito das principais
cidades e mandaram os funcionários compararem fotos manualmente dia e noite),
descobriram que o anônimo era conhecido como Robert McKenzie, aquele que foi
esfaqueado no episódio piloto e cuja vida Phil tentou salvar.
E aí a coisa
começou a ficar mais complicada, pois Robert tinha uma esposa, Joyce Ramirez, e
um filho recém-nascido de quem os russos não sabiam. Encurtando a história, os
Jennings têm que descobrir o que ela sabe deles e do que Robert fazia de
verdade. E o FBI a vê como valiosa fonte de informação. Achei interessante a
posição de liderança do Agente Gaad, pois enquanto agentes menos experientes
queriam capturá-la e interrogá-la, Gaad achou que ela seria mais importante
conduzindo-os a outros espiões inimigos.
De fato, foi uma
decisão, em princípio acertada, embora, na prática, tenha terminado em fracasso,
pois os soviéticos estavam muito bem preparados com a ajuda de colaboradores afro-americanos
locais. Aliás, a cena em que todos vigiam a jovem mãe e seu bebê foi típica de
filme de espionagem, em que vários espiões a observavam de diferentes lados. E
o que você acha? Gaad tomou a decisão certa ou deveriam ter interrogado Joyce
imediatamente?
Na disputa por
Joyce, os soviéticos tiveram uma significativa vitória. Tudo graças à atuação
da equipe/gangue de Gregory Thomas, com quem Elizabeth teve um sério
envolvimento. E esse foi o foco do episódio, os envolvimentos dos espiões
soviéticos. Robert mandou tudo para o ar, mudou de cidade, casou por amor e
teve filho. Já Elizabeth encontrou em Gregory uma espécie de alma gêmea. Alguém
apaixonado pelas causas em que ela acredita e apaixonado por ela. Alguém por
quem ela quase largou Philip. E alguém que ainda faz o possível para ter
Elizabeth de volta, como revelar a verdade a Philip que, por sua vez, reagiu
como um marido traído de verdade.
Realmente os
envolvimentos emocionais gerados nesse triângulo são complexos demais e poderão
ainda ser mais bem explorados no futuro. Mas conhecendo Elizabeth como já
conhecemos, já pudemos prever, desde o início, que, em nome da missão e de tudo
em que acredita, Elizabeth jamais abandonará Phil e por mais que ela desejasse
Gregory, esse relacionamento jamais se concretizaria.
E isso nos traz
de volta à questão das crenças ideológicas de Elizabeth. Sabemos agora que Liz
e Gregory se tornaram tão íntimos também pelo fato de ele ser um ativista civil
negro que, durante a Guerra do Vietnã, preferiu colaborar com a KGB como forma
de protesto contra o governo dos EUA. Mas como Elizabeth vê essa questão?
Os Jennings, de
fato têm uma vida mais confortável e com mais possibilidades nos EUA. Mas isso
não quer dizer automaticamente que nos anos 80 os EUA fossem um paraíso e a
URSS fosse uma ditadura dos infernos. Não podemos esquecer que os Jennings se
instalaram nos EUA como cidadãos brancos de classe média alta com casa nos
subúrbios, negócio próprio e renda garantida, ou seja, uma vida privilegiada.
Já Gregory provavelmente enfrentou questões de pobreza, lutou contra o
preconceito racial, convocações forçadas para uma guerra sem sentido, e teve
que lidar com a violência e os problemas da vizinhança menos privilegiada, do
tipo ao qual eles se referem como “the hood” (de “neighborhood”).
Um outro evento
digno de nota é que conhecemos Claudia (ou a “vovó” como Phil a chamou) a nova
superiora dos operativos Phil e Liz. Isso me deixou pensando no quão profunda é
a rede de espiões soviéticos nos EUA e quantos agentes infiltrados existem. Ea
gora podemos compreender melhor a paranoia dos anos de Guerra Fria, quando qualquer
um poderia ser o inimigo.
Só achei que a
maneira como Claudia se apresentou a Phil (seguindo-o no meio da noite e
simplesmente dizendo que era sua nova supervisora) foi amadora. Sei lá, não
precisava de, pelo menos, uma senha do tipo...
Claudia: “Os pássaros voam para o sul.”
Phil: “Mas só quando chega o inverno.”
Que tal isso? Ou
não. Talvez eu tenha visto episódios demais do seriado cômico Agente 86, muito
popular entre os anos 60 e 80.
Outro momento
digno de nota foi a missão que Phil teve que executar em lugar de Robert, que
era trocar uma valise de dinheiro por documentos secretos. A entrega não deixou
de ter seus percalços, ou seja, Phil saiu com um corte no abdômen, o que me
lembrou do ferimento que matou Robert. Como diriam, ossos do ofício. Bem, os
documentos revelaram mais uma etapa na saga de “Guerra nas Estrelas” (“Star Wars”
ou o sistema de escudo contra mísseis soviéticos). Mas confesso que se já não
soubéssemos como essa história termina, eu ficaria bem mais emocionado.
De qualquer
modo, Joyce Ramirez e o pequeno Oscar são entregues a Claudia com a promessa de
uma nova vida em Cuba. Na ocasião fiquei pensando se a pobre Joyce e o pobre Oscar
fizeram bom negócio em confiar nos russos. Afinal, considerando a pobreza que
se abateu sobre Cuba nos anos 90, depois do colapso soviético, Joyce ainda
viria a se arrepender de não ter procurado as autoridades americanas antes.
Pena que ela não
teve a oportunidade de se arrepender. Foi ingenuidade minha, mas por um momento
acreditei que ela iria aproveitar as praias tropicais de Havana. Mas, desde o
início, Joyce não passava de um estorvo a ser eliminado. E, por isso, teve um
final trágico.
E o pequeno Oscar
acabou sendo entregue à família de Robert em uma cidadezinha na URSS. Alguém
aqui acha que essa história poderia ter terminado de maneira diferente?
No final, como é
típico em The Americans, os Jennings
têm uma conversa franca sobre sentimentos. Elizabeth expôs os motivos que a levaram
a se apaixonar por Gregory e tanto ela quanto Phil tiveram que admitir que
aquela química, aquele momento repentino de descoberta da paixão jamais
acontecera com eles. Mas aí acontece algo interessante mesmo: Elizabeth sugere
que isso pode estar acontecendo com eles agora e segura a mão do marido. Só que
eu tenho sérios problemas para acreditar nisso. Pareceu-me que isso foi mais um
recurso para garantir que a fachada dos Jennings continue firme e que Phil não
pule fora como Robert fez. Reparem que sempre que há um momento crucial e ela
sente que Phil precisa ser convencido de algo, ela faz contato físico com ele.
Essa não foi a primeira vez.
Contudo se
Elizabeth passa a imagem de ser fria e manipuladora, o que podemos dizer de
Phil? Não sabemos direito do comprometimento dele coma ideologia por trás de
sua missão. Não sabemos dos desafios emocionais que ele enfrentou até agora. E
como vimos que ele se transforma em uma pessoa terrível quando necessário, isso
me faz pensar que Phil ainda nos trará muitas surpresas.
Por fim, que
espécie de ser humano você acha que teria condições de levar uma vida dupla de
espião? De construir uma família tendo a mentira como companhia constante e possivelmente
negando seus sentimentos verdadeiros? E como reagirá o Agente Beeman com o revés
das mortes de Robert e Joyce? E, a propósito, você jogaria racquetball com
Phil?
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